• Agro
  • Água & Saneamento
  • Desinformação
  • Exploração & Controle
  • Florestas & Uso do Solo
  • Geopolítica
  • Pesquisa
  • Petróleo
  • Povos Indígenas & Comunidades Tradicionais
  • Sociedade Civil
  • Violência
  • Atores
Especial: Pátria Grilada, Brasil

Ilustração: Bianca Baderna

16 abr 21

Especial: Pátria Grilada, Brasil

O roubo de terras públicas, o desmatamento e o governo Bolsonaro

 

Você sabia que a grilagem está na base da posse e da distribuição de terras no Brasil?

Historicamente, a grilagem tem sustentado um modelo de ocupação irregular de áreas públicas que se reflete na formação da propriedade e na distribuição desigual das terras no país, causando profundos impactos econômicos, políticos e socioambientais. 

 

O problema é antigo, mas não deixa de ser urgente. 

A explosão da grilagem e do desmatamento nos últimos anos, em especial após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, acentua a tendência de privatização de terras públicas e o descumprimento de preceitos constitucionais para a demarcação e proteção de territórios indígenas, quilombolas e unidades de conservação. Além disso, compromete o cumprimento das metas climáticas brasileiras ao catalisar a devastação das florestas. 

 

Neste Especial Sinal de Fumaça, explicamos o que é grilagem, como acontece, as principais leis e o ambiente favorável à prática criado pelo atual governo, com efeitos diretos nos índices de desmatamento, queimadas e violência no campo.

 

A TERRA E A LEI

Grilagem é a apropriação privada, irregular e criminosa de terras públicas pertencentes à União, Estados e Municípios; configura crime contra o patrimônio público.

Para ocupar irregularmente áreas públicas, os grileiros forjam títulos de imóveis e registram em cartórios, repetindo o procedimento em diversos órgãos de governo federal, estaduais e municipais e cruzando documentos para dar aparência de legalidade ao processo. As regiões Norte e Centro-Oeste concentram as maiores extensões de terras públicas – especialmente da União e, não por acaso, apresentam os maiores índices de grilagem do país. 

 

O termo grilagem vem de um truque usado no século passado: posseiros ilegais guardavam papéis e títulos forjados de posse de terras em gavetas com grilos. A ação dos insetos “envelhecia” a papelada, conferindo aspecto “autêntico” aos documentos falsos. 

 

Uma investigação do governo federal realizada em 1999 e seguida por uma CPI nos anos de 2000 e 2001 identificou pelo menos 100 milhões de hectares de terras com documentação suspeita. Com base nesses dados, o Incra cancelou registros de mais de 70 milhões de hectares de propriedades rurais, sendo ⅓ desse total localizado no estado do Pará. 

Passados vinte anos dessa operação que confirmou a escala do problema da grilagem no país, o sistema de controle fundiário brasileiro segue falho. Não há registro único de terras nem cruzamento entre os dados dos diversos órgãos fundiários municipais, estaduais e federais. Tampouco é feita fiscalização junto aos Cartórios de Registro Imobiliário.

Na ausência de controle, multiplicam-se as “terras de papel” – propriedades que só existem em documentos de cartórios sem qualquer lastro na realidade; ou sobrepõem-se diversos títulos para a mesma porção de terra; ou ainda registram-se títulos que declaram áreas maiores do que de fato ocupam. Com a informatização, as técnicas de fraude se diversificaram e evoluíram. Desde 2005, acumulam-se denúncias de venda irregular de terras na Amazônia pela internet em sites ou redes sociais como o Facebook em golpes digitais cada vez mais sofisticados. 

 

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PARA BOI DORMIR

Enquanto a grilagem continuou avançando sobre a Amazônia e o Cerrado, diferentes governos adotaram planos de regularização fundiária, ou seja, regras para formalizar a concessão de terras públicas que tenham sido ocupadas de forma irregular. Tais planos afetam diretamente a legislação de uso da terra no país, com destaque para o Código Florestal (Lei 12651/2012) e a Lei da Reforma Agrária (Lei 8628/1993). 

 

A Lei da Reforma Agrária (Lei 8629/1993) regulamentou os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, afirmando que “a propriedade rural que não cumprir a função social prevista no artigo 9º é passível de desapropriação” e que tal competência é da União. A Lei 8629 também dispõe sobre o que é imóvel rural de acordo com sua destinação: exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. Define ainda o conceito de tamanho da propriedade através da classificação por módulos fiscais: pequenas (até 4 módulos fiscais); médias (de 4 a 15 módulos fiscais) e grandes (acima de 15 módulos fiscais). 

 

Em 2009, o então governo Lula sancionou a MP 458, visando promover a regularização fundiária de propriedades irregulares de até 1.500 hectares /quatro módulos fiscais ocupados até 2004 localizadas na Amazônia Legal. Na época, o governo afirmou que a medida visava regularizar a situação de pequenos proprietários e facilitar a fiscalização e punição de grileiros. A MP 458 deu origem à Lei 11952/2009. 

Quase uma década depois, o governo Temer editou a MP 759/2016, que expandiu a regularização fundiária para propriedades em todo o país (não apenas a Amazônia Legal) e aumentou o tamanho das áreas passíveis de regulação para 2.500 hectares / quatro módulos fiscais ocupados até 2008. Na prática, a medida ampliou o marco temporal da regularização fundiária e, com isso, as possibilidades de áreas griladas mais recentemente serem legalizadas e os responsáveis, anistiados. A MP 759 foi transformada na Lei 13465/2017, que atualizou a redação de diversos artigos da Lei da Reforma Agrária e da Lei 11952/2009. 

No início de 2019, o governo Bolsonaro editou a Medida Provisória 910, imediatamente batizada de MP da Grilagem. Muito criticada por especialistas e entidades da sociedade civil e do movimento indígena, a MP 910 pretendia alterar o marco temporal da posse das terras para 2014 e ampliar a regularização para áreas de até 15 módulos fiscais. Sem avançar na Câmara dos Deputados, o prazo da MP 910 venceu, mas o governo logo voltou à carga com o Projeto de Lei 2633. Em tramitação no Congresso Nacional desde maio de 2019, o PL da Grilagem insiste em vários erros da MP 910 original e pretende alterar mais uma vez a Lei 11952/2009.

 

Instituído pelo Código Florestal e implantado por Instrução Normativa (2/2014) do Ministério do Meio Ambiente, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro público eletrônico obrigatório para todos os imóveis privados rurais. Existe para integrar dados sobre as propriedades e posses rurais em relação às áreas de reserva legal, de preservação permanente, de florestas e de remanescentes de vegetação nativa, norteando ações de combate ao desmatamento, planejamento ambiental e uso econômico da terra. No CAR, as informações são de responsabilidade do declarante, que pode responder penalmente em caso de declaração falsa, enganosa ou omissa. Apesar do Código Florestal explicitar que o registro no CAR não constitui título de propriedade e não se mistura com a regularização fundiária, o cadastro tem sido cada vez mais usado por grileiros para aparentar ocupação e uso de terras invadidas ilegalmente. Em tese, todos os registros no CAR que incidem sobre terras públicas não destinadas, terras indígenas e unidades de conservação deveriam passar por revisão e cancelamento, além de serem considerados indícios de crime de grilagem.

 

 

LINHA DE FRENTE DO DESMATAMENTO

A principal estratégia dos grileiros é forçar a ocupação produtiva para dar a entender que a terra está sendo efetivamente usada, no intuito de consolidar a posse em um futuro próximo. 

Na Amazônia, essa dinâmica do “fato consumado” em geral se materializa com a extração ilegal de madeira, desmatamento e queimadas para pastagens. A Amazônia Legal tem cerca de 50 milhões de hectares de florestas não destinadas – terras públicas sem finalidade definida e sem status de proteção ou de uso sustentável. Essas áreas são extremamente vulneráveis à grilagem e ao desmatamento. Segundo o Imazon, entre 2018 e 2019, 35% do desmatamento no Pará ocorreu dentro de terras da União, dado que aponta crime de grilagem.

Após ocupar uma área pública de floresta, geralmente o grileiro procede à extração ilegal da madeira de valor comercial. Desmatar um hectare de floresta tropical é uma operação complexa e que custa caro. A venda da madeira capitaliza o posseiro para pagar pela abertura de estradas de acesso e empregar máquinas de grande porte para derrubar o restante da mata, usando técnicas como o “correntão” – uma grossa corrente de aço amarrada entre dois tratores, além de fogo para “limpar” o terreno para futuras pastagens e monoculturas. 

Esse ciclo devastador desenha uma “fachada produtiva” que, dentro de um sistema disfuncional, cria condições para obter a posse da terra junto aos órgãos de controle. O modus operandi que envolve a presença de maquinário pesado, conhecimento jurídico para fraudar leis e uso de violência armada contra pequenos produtores, comunidades locais e povos indígenas são característicos da indústria da grilagem, que opera muitas vezes como uma verdadeira milícia do campo. Grileiros são ladrões de terras públicas – é importante não confundir com as comunidades e assentamentos rurais familiares que deveriam ser a prioridade nos processos de reforma agrária e regularização fundiária no país. 

 

ELES LIMPAM COM FOGO

Um exemplo concreto da estratégia grileira é o que ocorre no entorno da rodovia BR -163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA) e constitui importante corredor de escoamento de grãos produzidos na região. Levantamento do Greenpeace feito em 2020 identificou grandes áreas desmatadas no entorno da BR-163 logo antes ou logo após registros das propriedades no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Cerca de 62% das florestas públicas não destinadas da região constam do CAR. No intervalo 2019 – 2020, os alertas de desmatamento no entorno da BR- 163 aumentaram mais de 200%. 

Foi justamente nessa região que ocorreu o Dia do Fogo – incêndios florestais criminosos de grandes dimensões provocados de forma coordenada por fazendeiros e posseiros locais em agosto de 2019. Em mensagens divulgadas na imprensa regional, um produtor rural anunciou a ação criminosa: “(Os produtores) querem o dia 10 de agosto para chamar atenção das autoridades. (…) Na região, o avanço da produção acontece sem apoio do governo. Precisamos mostrar para o presidente (Jair Bolsonaro) que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”. 

A ameaça se concretizou e, naquele dia 10 de agosto de 2019, satélites do INPE registraram aumento de 300% nos focos de calor em 24h em reservas florestais de três municípios cortados pela BR- 163 – Novo Progresso, São Félix do Xingu e Altamira, todos no Pará. Mesmo com grande repercussão midiática nacional e internacional e promessas de investigação pela Polícia Federal e Ministério Público Federal, um ano depois quase ninguém havia sido responsabilizado e sobrevoos confirmaram que as áreas queimadas no Dia do Fogo foram transformadas em pastagens para gado.

 

Fonte do gráfico: IPAM 2020

 

Um estudo recente do Ipam mostra que áreas registradas ilegalmente como propriedades rurais privadas dentro de terras indígenas aumentaram 55% entre 2016 e 2020. O número de registros auto-declarados no CAR aumentou 75% no mesmo período – mesmo tais registros não sendo permitidos em territórios indígenas. Ao acentuar as disputas por terras já ocupadas ou reivindicadas, a grilagem ameaça populações tradicionais e alimenta a violência no campo.  

O crime de grilagem de terras públicas e a pressão sobre comunidades indígenas e quilombolas estão, por sua vez, associados à expansão da fronteira do agronegócio na Amazônia e no Cerrado, implicando diretamente as cadeias produtivas e de exportação de commodities como a soja e a pecuária, ou cerca de 25% do PIB nacional. 

A grilagem se configura, enfim, como uma etapa significativa do ciclo econômico de mau uso da terra que provoca desmatamento e produz emissões de gases de efeito estufa. Sem combater a grilagem e distribuir, demarcar e regularizar o uso da terra e das áreas de florestas, o Brasil não alcançará suas metas climáticas. 

 

O GOVERNO BOLSONARO E A PÁTRIA GRILADA 

Nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, o desmatamento em terras griladas aumentou quando comparado à média dos cinco anos anteriores. Entre 2014 e 2018, a média foi de 112,8 mil hectares; em 2019, o índice saltou para 215,6 mil hectares e, em 2020, para 226,5 mil hectares, segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). A área destruída corresponde a 20% de toda a devastação registrada na região amazônica durante o período. 

O incentivo à grilagem se dá por uma miríade de fatores como cortes nos órgãos de fiscalização ambiental e o empoderamento dos grileiros com os discursos pró-agronegócio e anti-legislação ambiental repetidos pelos altos escalões governamentais. Mais grave, o governo declara seu apoio à grilagem com manobras legislativas como a MP da Grilagem (MP 910/2019), reapresentada como Projeto de Lei 2633/2020 e que figura no topo da lista de prioridades encaminhada pelo executivo federal ao presidente da Câmara dos Deputados, Dep. Arthur Lira (PP-AL).

Entre muitos problemas, o PL 2633 transforma em lei a portaria do Ministério da Agricultura e do Incra que criou o programa “Titula Brasil”. O “Titula Brasil” facilita o processo de titulação de terras por auto-declaração, ameaçando territórios indígenas e quilombolas e áreas públicas de florestas que ainda não estão legalmente protegidas mas já são reivindicadas. A facilitação se dá pelo fim da necessidade de vistoria presencial – será feita por satélite – o que deve intensificar o processo de grilagem e destruição de mata nativa. O PL da Grilagem também prevê aumento do tamanho das terras passíveis de regularização para seis módulos fiscais e pode estender o marco temporal da posse irregular, ampliando a anistia a grileiros e desmatadores ilegais. Várias organizações da sociedade civil mantêm uma campanha permanente de pressão sobre os deputados para barrar o PL no site Saldão da Amazônia

Em outra frente legislativa pró-grilagem, em fevereiro de 2021, o Senador Irajá (PSD/TO) protocolou o PL 510 no Senado Federal em nova tentativa de mudar a Lei 11952/2009. O PL 510 retoma os retrocessos do texto original da MP 910/2019, cujo relator foi justamente o Senador Irajá: altera o marco temporal, flexibiliza requisitos para a regularização, inclui imóveis de até 2500 hectares e enfraquece salvaguardas ambientais, de acordo com análise do Climate Policy Initiative da PUC-Rio. 

A poucas horas de finalizar esse texto, na tarde do dia 15 de abril de 2021, a equipe de Sinal de Fumaça (e toda sociedade brasileira) foi pega de surpresa por uma sessão urgente do Senado Federal que colocou em votação e aprovou, sem consulta pública, o PL 4348/2019 por 64 votos a favor e 6 contrários. O objetivo declarado do PL 4348 é alterar o artigo 40 da lei de terras de 2009, facilitando a regularização fundiária de assentamentos rurais. Porém, o PL não deixa claro quais ocupações se enquadram na nova regra. ONGs e especialistas que acompanharam a votação acreditam que o PL 4348 deve incentivar a ação de grileiros sobre assentamentos e pequenas propriedades rurais, gerando mais impunidade e grilagem na Amazônia e outros biomas brasileiros. O projeto de lei seguiu para a Câmara dos Deputados e, uma vez votado, deve ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Para os grileiros, a “regularização fundiária” proposta pelo governo Bolsonaro é mais um presente. Soma-se ao enfraquecimento da Funai e à paralisação da demarcação de terras indígenas e quilombolas, ao desmonte dos órgãos de controle ambiental como o Ibama e ao esvaziamento dos processos de reforma agrária conduzidos pelo Incra desde o início da gestão bolsonarista. 

Pátria grilada, Brasil.

 

 

Fontes:
http://greenpeace.com.br/amazonia/pdf/grilagem.pdf 
https://ipam.org.br/wp-content/uploads/2020/04/NT3-Fogo-em-2019.pdf 
https://ipam.org.br/florestas-publicas-nao-destinadas-e-grilagem/ 
https://www.greenpeace.org/brasil/biodiversidade/amazonia-e-sua-biodiversidade-sofrem-com-a-falta-de-protecao-de-florestas-publicas-no-para/ 
https://arisp.files.wordpress.com/2009/08/relatorio-cpi-da-grilagem.pdf https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/noticias/noticia/cadastro-ambiental-rural
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13465.htm#art2 
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8629.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%208.629%2C%20DE%2025%20DE%20FEVEREIRO%20DE%201993.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20regulamenta%C3%A7%C3%A3o%20dos,Art
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11952.htm 
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm 
https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2252589
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/governo-lanca-programa-titula-brasil-para-agilizar-regularizacao-fundiaria
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/146639   
https://www.climatepolicyinitiative.org/pt-br/publication/nova-investida-contra-legislacao-fundiaria-projeto-de-lei-no-510-2021-retoma-os-retrocessos-da-mp-no-910-2019-e-beneficia-invasores-de-terras-publicas/ 
https://www.sinaldefumaca.com/tag/grilagem/ 
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037 
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037 
https://reporterbrasil.org.br/2020/08/dia-do-fogo-completa-1-ano-sem-presos-nem-indiciados-impunidade-incentiva-destruicao-da-amazonia/ 

Rebeca Lerer, jornalista e coordenadora do Sinal de Fumaça

Link copiado com sucesso!